segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Aborto

Recentemente, o geneticista Eli Vieira aperfeiçoou sua argumentação favorável à posição pró-escolha no debate sobre aborto. Seu argumento melhorado pode ser encontrado aqui.

Tentei fazer uma reconstrução do argumento, acrescentando alguns pontos que me parecem estar implícitos. Com o perdão do título absurdamente grande, chamarei o presente argumento de “Argumento da Permissibilidade Moral da Interrupção Arbitrária de uma Gestação Saudável até o Primeiro Trimestre”, uma vez que a discussão em jogo é a respeito da permissibilidade (ou não-permissibilidade) moral da interrupção arbitrária de gestações saudáveis—i.e., gestações que satisfazem todas as seguintes condições: (a) não são o resultado de estupro, (b) não envolvem fetos anencéfalos e (c) não constituem riscos consideráveis à vida da gestante. De todo modo, o presente argumento, com as devidas modificações, poderia se aplicar a qualquer caso de aborto até o primeiro trimestre de gestação. Sem rodeios, o argumento pode ser assim reconstruído:

O ARGUMENTO DA PERMISSIBILIDADE MORAL DA INTERRUPÇÃO ARBITRÁRIA DE UMA GESTAÇÃO SAUDÁVEL ATÉ O PRIMEIRO TRIMESTRE
P1. Se a entidade biológica geneticamente humana que está sendo gestada não possui cérebro ou não possui cérebro funcional, então ela não tem interesse atribuível ou comunicável.
P2. Um feto de até 12 semanas (provavelmente) não possui cérebro funcional.
Logo,
C1. Um feto de até 12 semanas (provavelmente) não tem interesse atribuível ou comunicável (modus ponens, P1, P2).
P3. Se um feto de até 12 semanas não tem o interesse (atribuível ou comunicável) de não ter sua vida arbitrariamente interrompida, então a interrupção arbitrária de uma gestação saudável de até (pelo menos) 12 semanas não constitui um dano à entidade biológica geneticamente humana que está sendo gestada.
P4. Se a interrupção arbitrária de uma gestação saudável de até (pelo menos) 12 semanas não constitui um dano à entidade biológica geneticamente humana que está sendo gestada, então uma gestante tem direito a interromper sua gestação arbitrariamente até (pelo menos) a 12ª semana.
Logo,
C2. Se um feto de até 12 semanas não tem o interesse (atribuível ou comunicável) de não ter sua vida arbitrariamente interrompida, então uma gestante tem direito a interromper sua gestação arbitrariamente até (pelo menos) a 12ª semana (silogismo hipotético, P3, P4).
P5. Se um feto de até 12 semanas não tem o interesse (atribuível ou comunicável) de não ter sua vida arbitrariamente interrompida, então ele não tem direito à vida.
Logo,
C3. Se um feto de até 12 semanas não tem o interesse (atribuível ou comunicável) de não ter sua vida arbitrariamente interrompida, então uma gestante tem direito a interromper sua gestação arbitrariamente até (pelo menos) a 12ª semana e um feto de até 12 semanas não tem direito à vida (conjunção, C2, P5).
P6. Um feto de até 12 semanas não tem o interesse (atribuível ou comunicável) de não ter sua vida arbitrariamente interrompida.
Logo,
C4. Uma gestante tem direito a interromper sua gestação arbitrariamente até (pelo menos) a 12ª semana (modus ponens, C2, P6).
C5. Um feto de até 12 semanas não tem direito à vida (modus ponens, P5, P6).
Logo,
C6. Uma gestante tem direito a interromper sua gestação arbitrariamente até (pelo menos) a 12ª semana e um feto de até 12 semanas não tem direito à vida (conjunção, C4, C5).
P7. Se um feto de até 12 semanas não tem direito à vida e uma gestante tem direito a interromper sua gestação arbitrariamente até (pelo menos) a 12ª semana, então interromper arbitrariamente a gestação de uma entidade biológica geneticamente humana é moralmente permissível até (pelo menos) a 12ª semana.
Logo,
C7. Interromper arbitrariamente a gestação de uma entidade biológica geneticamente humana é moralmente permissível até (pelo menos) a 12ª semana (modus ponens, P7, C6).
É importante notar que o presente argumento não depende de premissas questionáveis normalmente atribuídas a esse tipo de argumentação no debate, premissas tais como “A ciência determina o que é moralmente permitido ou proibido”. A ideia, aqui, não é a de que a neurociência e embriologia humana estão determinando o que é moralmente certo ou errado. O recurso aos conhecimentos adquiridos em neurociência e embriologia humana, presente neste argumento, é melhor interpretado como um caso em que tais instâncias de conhecimento são encaradas como pertinentes para informar nossa reflexão a respeito da permissibilidade (ou não-permissibilidade) moral do aborto.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Imaginação simpática como fonte legítima de garantia epistêmica

O GERMINA, Grupo de Estudos em Reflexão Moral Interdisciplinar e Narratividade, propiciou-me a oportunidade de me dedicar a questões epistemológicas que estivessem relacionadas à reflexão moral, ainda que numa perspectiva distante das discussões tradicionais de epistemologia moral—que pouco me interessam, para ser franco. Uma destas questões a que fui conduzido a pensar diz respeito ao papel da imaginação simpática na reflexão ética, não porque, do meu ponto de vista, deveríamos tornar esta última vazia de argumentação filosófica—aliás, eu prezo muito pela argumentação na filosofia—, mas porque a imaginação simpática parece ter, de fato, algum peso nas nossas reflexões morais ordinárias, embora esse peso esteja, como quase tudo afinal, sujeito a críticas razoáveis. Uma das minhas contribuições, neste sentido, foi desenvolver um argumento para favorecer a ideia de que a imaginação simpática é uma fonte legítima de garantia epistêmica.

O ARGUMENTO

O argumento pode ser construído de duas maneiras distintas, uma em que se pode chegar à mesma conclusão usando apenas a regra do modus ponens e outra em que se mesclam inferências por silogismo hipotético e modus ponens—o resultado, no final, é o mesmo. Aqui, o argumento será apresentado a partir desta segunda alternativa:
P1. Se o exercício da imaginação simpática nos permite ter acesso a determinados aspectos da realidade, então o exercício da imaginação simpática possui um funcionamento cognitivo (condicionalmente) apropriado.
P2. Se o exercício da imaginação simpática possui um funcionamento cognitivo (condicionalmente) apropriado, então a imaginação simpática é uma fonte legítima de garantia epistêmica.
Logo,
C1. Se o exercício da imaginação simpática nos permite ter acesso a determinados aspectos da realidade, então a imaginação simpática é uma fonte legítima de garantia epistêmica (silogismo hipotético, P1, P2).
P3. O exercício da imaginação simpática nos permite ter acesso a determinados aspectos da realidade.
Logo,
C2. A imaginação simpática é uma fonte legítima de garantia epistêmica (modus ponensC1, P3).
Tentarei, agora, explicar com brevidade cada uma das premissas do argumento.

EXPLICANDO AS PREMISSAS DO ARGUMENTO

P1 pressupõe que o acesso que temos à realidade por meio da imaginação simpática carrega, consigo, um elemento cognitivo. A ideia, aqui, é a de que os outputs do exercício de nossa imaginação simpática, com respeito a estes aspectos da realidade em questão, seriam crenças com maior chance de verdade do que falsidade. É por isso que entendo o antecedente de P1 como implicando a ideia de que o exercício da imaginação simpática possui um funcionamento cognitivo apropriado. Este funcionamento cognitivo, porém, não é apropriado de modo incondicional. Ele é condicionalmente apropriado, uma vez que o exercício da imaginação simpática nos permite ter acesso apenas a determinados aspectos da realidade. Poderíamos até dizer, para expressar a mesma ideia de maneira diferente, que o exercício da imaginação simpática é relevante a um certo domínio de proposições, e não a outros, assim como as demais faculdades cognitivas de que desfrutamos.

P2 entende que tal funcionamento cognitivo apropriado implica que a imaginação simpática é uma fonte legítima de garantia epistêmica, i.e., que ela é uma fonte legítima de garantia da verdade daquilo em que se crê. A ideia, aqui, é a de que a confiabilidade da imaginação simpática implica que ela seja uma fonte segura de garantia epistêmica—reiterando que esta confiabilidade se aplica a certos contextos e não a outros.

Por fim, P3 é, a meu ver, a premissa do argumento que mais filósofos estariam dispostos a rejeitar. Eu sustento, no entanto, que o exercício da imaginação simpática nos permite ter acesso à realidade do Outro, i.e., aos seres que compartilham conosco uma subjetividade. Claro que este acesso está sujeito a críticas razoáveis. Por exemplo, se alguém me questionar se a confiabilidade da imaginação simpática se estende ao acesso à subjetividade de animais invertebrados, tais como moluscos, crustáceos, aracnídeos e insetos, eu tenderia a dizer que, nestes casos, há espaço para dúvida razoável acerca da confiabilidade da imaginação simpática—eu até mesmo estaria disposto a dizer que ela não é confiável nestes contextos. Nestes casos, a meu ver, pesquisas empíricas a respeito da subjetividade destes organismos são requeridas, algo que, de alguma forma, já podemos observar em pesquisas com Carcinus maenas e Apis mellifera.

CONTRIBUIÇÕES À REFLEXÃO MORAL INTERDISCIPLINAR

Uma das contribuições que podem ser extraídas do presente argumento é que, uma vez assumido que obras literárias—e obras de arte de modo geral—elicitam nossa imaginação simpática, e uma vez que se assuma que a imaginação simpática possui alguma relevância na reflexão moral—ao menos em contextos envolvendo seres humanos e outros animais cognitivamente complexos—, então obras literárias—e obras de arte de modo geral—também teriam sua relevância garantida neste contexto. A ideia, aqui, é a de que obras literárias podem chamar a atenção para certos aspectos significativos de nossa vida moral que constantemente passam despercebidos por nós, promovendo uma reflexão ético-filosófica enriquecedora.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Empatia: implicações filosóficas

A empatia é a capacidade que alguns indivíduos—nomeadamente, diversos mamíferos e também aves (de Waal, 2008)—têm de se contagiarem motora e emocionalmente com os outros. Exemplos corriqueiros desses tipos de contágio ocorrem quando outras pessoas bocejam ou sorriem para nós.

Esta definição implica, a meu ver, dois aspectos filosoficamente salientes da empatia. O primeiro destes aspectos é relativo à teoria das emoções em filosofia da mente. O segundo deles é relativo ao desafio cético de provar a existência de “outras mentes”. Explico.

UM CONSTRANGIMENTO ESPECIAL À TEORIA DAS EMOÇÕES

Uma vez que se acumulam evidências de que muitos animais têm a capacidade de se contagiarem motora e emocionalmente com os outros, pressupõe-se que emoções são atribuíveis também aos animais empáticos. Isto implica um constrangimento importante para qualquer teoria das emoções em filosofia da mente, pois uma boa teoria das emoções precisa ser capaz de explicar de que modo os animais empáticos têm emoções, ou ao menos permitir que algumas emoções sejam atribuíveis aos animais empáticos.

O DESAFIO CÉTICO É SUPÉRFLUO

A crença banal e ordinária de que existem outras pessoas além de mim é desafiada pelo cético, que propõe que provemos a existência dessas outras pessoas. Uma possível saída ao desafio cético diria que, embora o contágio motor e emocional com os outros não seja uma prova da existência de outras pessoas, ele é suficientemente relevante para nos garantir a existência dessas outras pessoas. Deste modo, a própria exigência de uma prova da existência de outras pessoas seria supérflua e, portanto, o desafio cético se torna supérfluo.

REFERÊNCIA

DE WAAL, F. “Putting the Altruism Back into Altruism: The Evolution of Empathy”. Annual Review of Psychology, 59, (2008): 279-300.