domingo, 28 de junho de 2015

A abordagem híbrida da dimensão normativa do conhecimento

A análise tradicional do conhecimento proposicional (i.e., do saber-que) diz que esse tipo de conhecimento é completamente entendido a partir de três condições que são individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para dar lugar ao conhecimento: a condição atitudinal do crer-que, a condição semântica da verdade e a condição epistêmica da justificação epistêmica. Em suma, para esta teoria 'tripartite' do conhecimento, conhecimento é crença verdadeira justificada. Entretanto, desde Gettier (cf. Gettier 1963) os epistemólogos reconhecem que justificação epistêmica, verdade e crença não são, em conjunto, suficientes para dar lugar ao conhecimento. Casos tipo-Gettier, embora não questionem a necessidade individual de cada uma dessas condições, são uma família de célebres contraexemplos à suficiência conjuntiva das três condições estipuladas pela análise 'tripartite' do conhecimento proposicional. Neles, podemos observar que um sujeito forma uma crença verdadeira justificada, mas nós, intuitivamente, não atribuiríamos conhecimento ao sujeito em questão.

Uma pequena sondagem aos casos tipo-Gettier revela o que está em jogo em cada um deles: o sujeito forma uma crença verdadeira justificada, mas a verdade da crença é alcançada de maneira acidental ou, para usar um termo de agrado dos epistemólogos, a verdade da crença é alcançada por uma sorte epistêmica. Com efeito, a epistemologia contemporânea pós-Gettier, no que diz respeito à análise do conhecimento proposicional, é quase toda ela uma tentativa de acomodar intuições anti-sorte (cf. Pritchard 2005 para uma análise mais detalhada).

Eu acredito ter uma solução ao problema da natureza do conhecimento (e, por consequência, ao problema de Gettier). Ademais, eu acredito que minha proposta teórica é capaz de solucionar problemas tais como o problema do valor do conhecimento e até mesmo oferece uma resposta aos problemas céticos do mundo exterior e das outras pessoas, compatível com a resposta oferecida por G. E. Moore—para a qual muitos epistemólogos ainda torcem a boca.

Embora eu seja um entusiasta da epistemologia das virtudes, eu já não acredito que possamos entender a dimensão normativa do conhecimento somente em termos de excelências de nível pessoal. Eu tento entender a dimensão normativa do conhecimento em termos de padrões epistêmicos que incluiriam tanto qualidades do agente epistêmico quanto qualidades da comunidade epistêmica e dos artefatos epistêmicos. Ou seja, os padrões epistêmicos podem incluir tanto as habilidades cognitivas daquele que possui crenças candidatas a conhecimento quanto as qualidades dos informantes de uma comunidade epistêmica (testemunhas, jornalistas, especialistas etc.) e, também, o bom funcionamento dos artefatos epistêmicos operados pelo agente epistêmico (relógios, termômetros, calculadoras etc.).

Com relação ao debate entre internistas e externistas epistêmicos, a minha solução é mostrar como intuições confiabilistas são, na verdade, compatíveis com alguma forma de responsabilismo. Existem duas vertentes principais na epistemologia das virtudes: o confiabilismo das virtudes (de tendência externista) e o responsabilismo das virtudes (de tendência internista). No fundo, o que eu faço é tentar mostrar que não há inconsistência entre ambas as vertentes e que, ao compatibilizá-las, nós conseguimos superar o debate entre internistas e externistas. Isso não é uma novidade, para ser sincero. Ernest Sosa em Knowledge in Perspective e John Greco em Achieving Knowledge (e também em Putting Skeptics in their Place) já indicaram a viabilidade desse caminho ao satisfazerem duas supostas demandas da dimensão normativa do conhecimento: a justificação objetiva e a justificação subjetiva. A justificação subjetiva é especialmente importante, como Greco nota (cf. Greco 2010, Ch. 10, 5), para resolver um problema apontado por Laurence BonJour ao confiabilismo processual, mas não se trata de uma estratégia meramente ad hoc, como pode parecer à primeira vista. Voltemos, entretanto, ao debate entre internistas e externistas. Afinal, como compatibilizar intuições confiabilistas com alguma forma de responsabilismo? Sendo o confiabilismo e o responsabilismo relevantes para entender a dimensão normativa do conhecimento, e sendo que eu entendo essa dimensão em termos de padrões epistêmicos, minha ideia é a de que nós selecionamos e incorporamos esses padrões em nossas vidas intelectuais, em nossos artefatos epistêmicos e em nossas comunidades epistêmicas porque nós desejamos a verdade e porque eles são conducentes à verdade (e.g., nós desejamos que nossos relógios estejam funcionando bem porque desejamos adquirir crenças verdadeiras acerca do horário atual para não perder, suponha, uma entrevista de emprego). Entenda o desejo pela verdade, ou mesmo o amor pela verdade, como aquele sentimento intelectual que uma pessoa manifesta quando procede de maneira epistemicamente responsável, e entenda o fato de esses padrões epistêmicos serem conducentes à verdade como aquilo que torna esses padrões epistemicamente confiáveis. O resultado é uma proposta teórica que acomoda tanto o confiabilismo quanto o responsabilismo—ou, pelo menos, alguma forma de responsabilismo. Com efeito, pelo fato de desejarmos a verdade (não necessariamente como um fim em si mesmo, mas principalmente pelo seu valor instrumental) e pelo fato de esses padrões serem conducentes à verdade, selecionar e incorporar esses padrões é uma questão de inteligência, capacidade biopsíquica que nós exercitamos quando precisamos resolver nossos problemas. Isso nos permite compreender o processo de adoção das metodologias empíricas das ciências modernas em nossa comunidade científica. Em suma, as metodologias empíricas se mostraram conducentes à verdade e, pelo fato de desejarmos atingir a verdade, selecionar e incorporar tais metodologias foi uma questão de inteligência. Com efeito, nós somos responsáveis por selecionar e incorporar padrões que são confiáveis. Alternativamente, ao selecionar e incorporar padrões que são confiáveis, nós aperfeiçoamos nossa performance doxástica de uma maneira responsável.

Isso já nos faz ter uma ideia do que é estar em uma posição epistêmica positiva para reivindicar p, i.e., afirmar que p é o caso, seja "p" uma proposição, sentença ou enunciado qualquer. Em poucas palavras, estar em uma posição epistêmica positiva para reivindicar p é crer que p por meio dos padrões epistêmicos relevantes. É de bom senso pensar que alguns padrões epistêmicos são relevantes sob certas circunstâncias, enquanto outros não o são. Como Greco faz notar em Achieving Knowledge, a habilidade para discriminar visualmente o ouro de outros metais é relevante para procurar por ouro em um ambiente iluminado, mas irrelevante para procurar por ouro em um ambiente escuro. É plausível, portanto, dizer que os padrões epistêmicos são situacionalmente-responsivos, i.e., responsivos a situações específicas, sendo relevantes sob certas circunstâncias e irrelevantes sob outras. Eu creio que este fato nos habilita a oferecer uma resposta plausível ao problema do mundo exterior e ao problema das outras mentes com os quais os céticos gostam de cantar vitória. Fundamentalmente, os céticos acreditam que para que alguém esteja em uma posição epistêmica positiva para declarar que o mundo existe e que outras pessoas existem, esse alguém precisa ter uma prova da existência do mundo exterior e da existência de outras pessoas. Dadas as hipóteses céticas (cérebro numa cuba, gênio maligno, sonhos etc.), é impossível oferecer uma tal prova da existência do mundo exterior e da existência de outras pessoas porque não teríamos como saber se somos ou não cérebros numa cuba, ou se estamos sendo iludidos por um gênio maligno, ou se estamos ou não sonhando etc. A conclusão do cético é a de que nós não estabelecemos qualquer relação epistêmica com o mundo—nós não sabemos que o mundo existe, nem que outras pessoas existem e não estamos justificados a crer na existência do mundo exterior e de outras pessoas. A conclusão é incômoda e as premissas parecem muito convincentes quando apreciadas devidamente. Há, porém, um problema: os céticos exigem que, para que eu esteja justificado a crer na existência do mundo exterior e de outras pessoas, eu preciso de uma prova. Em outras palavras, eles exigem que nós sejamos capazes de oferecer um raciocínio capaz de concluir que o mundo existe e que outras pessoas, além de nós mesmos, também existam. Na presente perspectiva, porém, fazer tal exigência é supérfluo, pois os padrões epistêmicos relevantes para se estar em uma posição epistêmica positiva para acreditar que o mundo e que outras pessoas existem são, respectivamente, nosso aparato sensório-motor e o testemunho das outras pessoas. Poderia ser argumentado também—e eu considero essa tese bastante plausível—que o conhecimento de que outras pessoas existem se segue de nossa capacidade de se contagiar motora e emocionalmente com os outros—aquilo que nós apropriadamente chamaríamos de empatia. Com efeito, o raciocínio dedutivo não é um padrão epistêmico relevante para saber que o mundo e outras pessoas existem. O raciocínio dedutivo é um padrão epistêmico relevante para concluir verdades matemáticas, lógicas ou mesmo filosóficas e científicas, mas não para assegurar crenças banais como a de que o mundo e outras pessoas existem.

Como resultado, eu tenho aquilo que eu chamo pelo nome de abordagem híbrida do conhecimento e da dimensão normativa do conhecimento. Ela é 'híbrida' por uma série de razões, para ser exato: porque reconhece a circunstancialidade sob a qual certos padrões epistêmicos são relevantes ou irrelevantes; porque acomoda tanto intuições confiabilistas quanto alguma forma de responsabilismo; e porque os padrões epistêmicos incluem tanto qualidades do agente epistêmico quanto qualidades da comunidade epistêmica com quem o agente epistêmico interage ou dos artefatos epistêmicos operados pelo agente epistêmico. O que se segue dessa abordagem híbrida é, fundamentalmente, a tese de que saber que p é realizar uma performance doxástica bem-sucedida por meio dos padrões epistêmicos relevantes. Tal proposta evita casos tipo-Gettier. Em casos de conhecimento, a parte mais importante para explicar por que o agente epistêmico realiza uma performance doxástica bem-sucedida são os padrões epistêmicos relevantes. Em casos tipo-Gettier, a parte mais importante para explicar por que o agente epistêmico realiza uma performance doxástica bem-sucedida é a sorte epistêmica. O diagnóstico que a presente abordagem oferece de casos tipo-Gettier é o de que, em tais casos, os padrões são desviantes—não são os padrões epistêmicos relevantes que nós selecionaríamos e incorporaríamos em nossas vidas intelectuais com responsabilidade e em função da confiabilidade dos padrões. Em outras palavras, a sorte epistêmica não é um padrão confiável e, portanto, agentes responsáveis não a adotariam como padrão para serem conduzidos à verdade. Não obstante, a abordagem híbrida nos permite entender por que pelo menos alguns casos de conhecimento têm mais valor que a mera crença verdadeira. Esse fato ocorre em função de que, em alguns casos de conhecimento, aquele que conhece merece crédito epistêmico pela performance doxástica bem-sucedida.

Isso é, de modo geral, o que eu irei apresentar e defender em meu trabalho de conclusão de curso (TCC) daqui há dois dias (30/06), às 19h00min. Espero que essa proposta—embora ainda bastante embrionária, é preciso admitir—, seja, de fato, uma grande contribuição à epistemologia contemporânea, como eu penso que é.

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