quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Virtudes Intelectuais e Educação

O ano de 2016 foi mais um grande ano na minha vida. Passei por grandes momentos e tive grandes conquistas. Uma delas foi, sem sombra de dúvida, ter ingressado no Doutorado direto, algo que está diretamente ligado à qualidade da minha Dissertação, escrita em apenas nove dias e defendida no 7 de outubro deste ano—aniversário do meu pai; cinco dias antes do Dia das Crianças; num período de delicadas discussões sobre educação no Brasil; e no ano em que se comemorou os 100 anos da publicação de Democracy and Education, do meu herói filosófico John Dewey.

Isto tudo veio a calhar muito bem no assunto da minha Dissertação, uma vez que meu trabalho foi uma tentativa de aplicar a epistemologia das virtudes no contexto específico da prática e teoria educacional. Concentrei minha atenção em traços de caráter intelectual, tais como inquisitividade, mentalidade arejada e autonomia intelectual, explorando (i) a natureza das virtudes intelectuais; (ii) as relações entre virtudes intelectuais e emoções; (iii) as razões para tratá-las como um fim da educação; (iv) os critérios para a seleção de virtudes intelectuais relevantes em ambientes escolares; e (v) alguns métodos didáticos para cultivá-las na comunidade escolar.

O capítulo 1 da minha Dissertação, “Virtudes Intelectuais e Emoções”, foi dedicado aos itens (i) e (ii). Com o fim de investigar a natureza das virtudes intelectuais, adotei três procedimentos metodológicos distintos.

Num primeiro momento, busquei responder à questão “o que são virtudes intelectuais?” por meio de uma análise diferencial, i.e., por meio de uma análise do conceito de virtude intelectual em que se buscou distingui-la de outras espécies do mesmo gênero ao qual as virtudes intelectuais pertencem, a saber, o gênero das excelências cognitivas, ou competências intelectuais. Selecionei duas espécies de excelências cognitivas para distingui-las das virtudes intelectuais, a saber, as habilidades cognitivas e os talentos naturais. O resultado que obtive não foi uma definição precisa de ‘virtude intelectual’, mas uma conceitualização daquilo que virtudes intelectuais tipicamente são—ou seja, uma conceitualização capaz de elucidar um pouco a natureza das virtudes intelectuais, ainda que vaga.

Num segundo momento, busquei responder à questão “o que são virtudes intelectuais?” por meio de uma descrição taxonômica, i.e., por meio de uma síntese de virtudes intelectuais formando grupos maiores, tais como o grupo das virtudes intelectuais relativas à motivação, ou flexibilidade, ou persistência etc. Neste ponto, creio que há bastante coisa a ser explorada, especialmente no que concerne as relações que as próprias virtudes intelectuais estabelecem entre si, em especial relações de fundamentação metafísica, tais como constituição e causalidade.

Num terceiro e último momento, busquei responder à questão “o que são virtudes intelectuais?” por meio de uma análise conceitual, i.e., por meio de uma análise do conceito de virtude intelectual em que se buscou apresentar as condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que um traço de caráter intelectual seja uma virtude intelectual. Quatro modelos foram apresentados e debatidos.

Ainda no capítulo 1, tento explorar as relações que as virtudes intelectuais estabelecem com as emoções. Neste caso, adotei os seguintes procedimentos: primeiro, fiz uso de uma virtude intelectual específica—a coragem intelectual—para argumentar favoravelmente ao meu primeiro ponto, a saber, o de que algumas virtudes intelectuais são a maneira inteligente ou apropriada de se lidar com certas emoções. Em segundo lugar, fiz uso de pesquisas de psicologia social para argumentar favoravelmente ao meu segundo ponto, a saber, o de que algumas emoções—e situações—são capazes de inibir ou estimular atos de virtude intelectual.

O capítulo 2, “Virtudes Intelectuais como um Fim da Educação”, foi dedicado aos itens (iii) e (iv). Nele, eu desenvolvo três argumentos que favorecem uma educação voltada às virtudes intelectuais, sendo que estes três argumentos compartilham em comum a mesma estrutura argumentativa. Em seguida, considero três objeções à desejabilidade de uma educação voltada às virtudes intelectuais e ofereço respostas a elas. Por fim, desenvolvo cinco critérios para a seleção de virtudes intelectuais relevantes no ambiente escolar. Estes critérios são importantes no contexto da minha Dissertação, pois dão a base epistêmica necessária para a seleção das três virtudes intelectuais que eu faço no último capítulo para vislumbrar como seria uma educação voltada às virtudes intelectuais. A construção destes critérios, por sua vez, possui bases epistêmicas distintas—envolvendo desde os propósitos comuns à educação até aspectos para os quais nós devemos ser sensíveis no ambiente escolar. São eles:
  • Cr1. Critério sensível à psicologia característica da infância;
  • Cr2. Critério relativo à facilitação do diálogo entre as pessoas;
  • Cr3. Critério relativo à mentalidade independente;
  • Cr4. Critério sensível às contingências da comunidade escolar;
  • Cr5. Critério sensível às prioridades individuais do estudante.
O capítulo 3, “Virtudes Intelectuais na Comunidade Escolar”, foi dedicado ao item (v). Nele, eu apresento algumas estratégias e métodos didáticos para o ensino e cultivo de virtudes intelectuais no ambiente escolar. Em seguida, seleciono três virtudes intelectuais—inquisitividade, mentalidade arejada e autonomia intelectual—e mostro como estas estratégias e métodos didáticos podem ser aplicadas com respeito a estas virtudes intelectuais específicas.

A primeira destas estratégias envolve identificar os interesses individuais dos estudantes e as virtudes intelectuais requeridas para o estudo daquilo que lhes interessam. Por exemplo, se um estudante manifesta muito interesse por química e o estudo de química requer virtudes intelectuais relativas à flexibilidade mental e à persistência nos estudos—e.g., adaptabilidade intelectual, criatividade e mentalidade arejada, bem como determinação, paciência e coragem intelectual—, então é uma questão de inteligência estimular nele virtudes intelectuais relativas à flexibilidade e à persistência nos estudos.

A segunda estratégia envolve identificar as deficiências que cada estudante apresenta com respeito às virtudes intelectuais. Por exemplo, se um estudante manifesta deficiências significativas com respeito às virtudes intelectuais relativas à concentração ou à motivação nos estudos—e.g., escrutínio, atenção e observação cuidadosa, ou curiosidade, maravilhamento e inquisitividade—, então é uma questão de inteligência estimular nele virtudes intelectuais relativas à concentração e à motivação nos estudos.

A terceira estratégia advém dos estudos de psicologia social trabalhados por mim já no capítulo 1. Fundamentalmente, estes estudos acabam sugerindo métodos didáticos para o ensino e cultivo de virtudes intelectuais que poderíamos chamar pelo rótulo de ‘estratégias situacionistas’. A sugestão aqui é a de que (1) num primeiro momento—onde o propósito é cultivar o caráter intelectual do estudante—, se emoções e situações de certo tipo estimulam a virtude intelectual x e x é uma virtude intelectual relevante no ambiente escolar, então é uma questão de inteligência planejar o ambiente escolar de tal modo que ele suporte as emoções e situações que estimulam a virtude intelectual x; e (2) num segundo momento—onde o propósito é avaliar o caráter intelectual do estudante—, se emoções e situações de certo tipo inibem a virtude intelectual x, então é uma questão de inteligência planejar o ambiente escolar de tal modo que ele suporte as emoções e situações que inibem a virtude intelectual x.

Outras estratégias envolvem (a) uma cultura institucional de suporte às virtudes intelectuais; (b) uma instrução direta acerca dos conceitos e da terminologia relativa às virtudes intelectuais; (c) autorreflexão e autoavaliação; (d) conexões explícitas entre o material do curso e as virtudes e vícios intelectuais; (e) oportunidades para praticar as ações características das virtudes intelectuais; (f) a integração de conceitos e critérios de virtudes em avaliações formais e informais; e (g) imitação de modelos de pessoas intelectualmente virtuosas.

Para ilustrar com exemplos, tomemos (d): se um(a) professor(a) de biologia precisa explicar a teoria endossimbiótica, ele(a) pode fazer conexões explícitas entre o conteúdo da matéria e as virtudes intelectuais da perseverança, determinação e coragem intelectual apresentadas por Lynn Margulis ao propor a teoria à comunidade científica. Um(a) professor(a) de física que esteja explicando a teoria da gravitação universal poderá fazer conexões explícitas entre o conteúdo da matéria com a virtude da inquisitividade que supostamente levou Isaac Newton a formular a questão sobre se a força que faz com que a maçã caia em direção ao centro da Terra não é a mesma força que faz com que a Lua gire em torno da mesma. Um(a) professor(a) de história que esteja explicando a história do feminismo no Brasil poderá fazer conexões explícitas entre o conteúdo que está sendo explicado e as virtudes intelectuais da coragem intelectual apresentadas pelas primeiras feministas brasileiras, tais como Nísia Floresta. No fim das contas, tais estratégias e métodos didáticos complementam um ao outro no propósito de ensinar e cultivar virtudes intelectuais na educação.

Minha Tese de Doutorado será uma continuação da Dissertação. Já há, porém, elementos que pretendo acrescer. Dentre eles, estão o acréscimo de aptidões técnicas na análise diferencial de virtudes intelectuais com respeito a outras excelências cognitivas; o acréscimo de dois novos grupos de virtudes intelectuais na descrição taxonômica das mesmas; um debate aprofundado acerca das relações de fundamentação metafísica que as virtudes intelectuais estabelecem entre si, bem como de representações gráficas destas relações—por meio de diagramas de Venn; os desafios situacionistas à ideia de ‘traços de caráter’ e a viabilidade de uma educação orientada ao caráter; as relações entre virtudes intelectuais e morais e o papel das virtudes intelectuais no desenvolvimento moral das pessoas; o acréscimo de outras cinco virtudes intelectuais—curiosidade, criatividade, humildade intelectual, generosidade intelectual e coragem intelectual—para debater estratégias e métodos didáticos específicos no ensinamento dessas respectivas virtudes; bem como um apêndice onde eu e meu orientador atual pretendemos apresentar um relatório com os resultados de ao menos alguns experimentos didáticos no cultivo e ensino de alguma virtude intelectual a ser selecionada.

Neste apêndice, inclusive, eu pretendo explorar melhor o modelo de comunidade escolar que perpassou toda a minha Dissertação, o qual chamei de “modelo experimental da comunidade escolar”. Também pretendo oferecer maiores esclarecimentos acerca daquilo que, já nas considerações finais da minha Dissertação, chamei de “projeto robusto” e “projeto exíguo” de educação, bem como acrescentar uma nova ideia à filosofia da educação que venho desenvolvendo, a saber, a ideia de que o desempenho inteligente é (1) o fim primordial e (2) o principal meio da educação—a minha ideia é de que o modelo experimental da comunidade escolar é o modelo que melhor favorece o desempenho inteligente tanto dos estudantes quanto dos educadores. Eis o lema: cultivar a educação para o desempenho inteligente. Assim, talvez, ainda possamos manter acesa a esperança numa civilização reformada através do uso da inteligência.

2 comentários:

  1. Mentalidade arejada é a sua tradução para open mindedness?

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    1. Isso! É a maneira como eu encontrei para traduzir open-mindedness. Eu prefiro essa solução a "mente aberta", ou "mentalidade aberta".

      Por falar nisso, você conhece alguma outra tradução, ou mesmo propõe alguma diferente?

      Abraços!

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